Monday, May 29, 2006

O pensamento de Gramsci

por Carlos I.S. Azambuja em 28 de abril de 2005
Resumo: O socialismo proposto por Gramsci não passa pelos proletários e camponeses, e sim pela cultura e pelo efeito multiplicador dos meios de comunicação, buscando, através de métodos persuasivos, mudar a mentalidade vigente em uma sociedade. © 2005 MidiaSemMascara.org

"Diz Goethe, quando a gente não sabe o que fazer, uma palavra é como uma tábua para o náufrago”.

(Olavo de Carvalho, “O Jardim das Aflições”)

O italiano Antonio Gramsci, um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, foi o primeiro teórico marxista a compreender que a revolução na Europa Ocidental teria que se desviar muito do rumo seguido pelos bolcheviques russos. Nesse sentido, ofereceu um novo “Que Fazer” ao Ocidente desenvolvido. Aquilo que ele chamou de “sociedade civil” – rede de instituições educativas, religiosas e culturais que disseminam modos de pensar – era, na Rússia, incapaz de fornecer uma doutrinação moral e intelectual de caráter unitário, uma vez que o Estado czarista fundamentava-se na ignorância, na apatia e na repressão, e não no consentimento voluntário dos súditos. Na ausência de uma articulação complexa da “sociedade civil” em condições de absorver a insatisfação, a única defesa da velha ordem era constituída pelo aparelho do Estado, que Gramsci denomina de “sociedade política”. O conjunto difuso da “sociedade civil”, que propaga a ideologia da classe dominante, não existia na Rússia.

Segundo Gramsci, o objetivo da batalha pela mudança é conquistar, um após outro, todos os instrumentos de difusão ideológica (escolas, universidades, editoras, meios de comunicação social e sindicatos), uma vez que os principais confrontos ocorrem na esfera cultural e não nas fábricas, nas ruas ou nos quartéis.

Dessa forma, Gramsci abandonou a generalizada tese marxista de uma crise catastrófica que permitiria, como um relâmpago, uma bem sucedida intervenção de uma vanguarda revolucionária organizada. Ou seja, uma intervenção do Partido. Para ele, nem a mais severa recessão do capitalismo levaria à revolução, como não a induziria nenhuma crise econômica, a menos que, antes, tenha havido uma preparação ideológica.

Segundo a linguagem colorida de Gramsci, o proletariado precisa transformar-se em força cultural e política dirigente dentro de um sistema de alianças, antes de atrever-se a atacar o poder do Estado-burguês. E o Partido deve adaptar sua tática a esses preceitos, sem receio de parecer que não é revolucionário.

Lênin sustentava que a revolução deveria começar pela tomada do Estado para, a partir daí, transformar a sociedade. Gramsci inverteu esses termos: a revolução deveria começar pela transformação da sociedade, privando a classe dominante da direção da “sociedade civil” e, só então, atacar o poder do Estado. Sem essa prévia “revolução do espírito”, toda e qualquer vitória comunista seria efêmera.

Para tanto, Gramsci definiu a sociedade como “um complexo sistema de relações ideais e culturais” onde a batalha deveria ser travada no plano das idéias religiosas, filosóficas, científicas, artísticas, etc. Por essa razão, a caminhada ao socialismo proposta por Gramsci não passava pelos proletários de Marx e Lênin e nem pelos camponeses de Mao-Tsetung, e sim pelos intelectuais, pela classe média, pelos estudantes, pela cultura, pela educação e pelo efeito multiplicador dos meios de comunicação social, buscando, através de métodos persuasivos, sugestivos ou compulsivos, mudar a mentalidade, desvinculando-a do sistema de valores tradicionais, para implantar os valores ateus e materialistas.

O comunismo de Gramsci é a “versão ocidental” do comunismo, e ao proclamar o diálogo e aceitar o debate, próprios dos sistemas verdadeiramente democráticos, trabalha sobre todas as formas de expressão cultural, atuando sob a cobertura do pluralismo, com a contribuição de todos aqueles que por compartilhar a ideologia marxista, por snobismo, por conveniência ou por negligência, se somam voluntária ou involuntariamente a essa nova expressão do “frentismo”, chamando “fascistas” ou “retrógados” aqueles que se opõem a essa forma de pensar e atuar.

Nessa confusão de idéias, chega-se a substituir a contradição hegeliana de “burguês – proletário” (tese e antítese) pela de “fascista – anti-fascista”. O inimigo não é patrão e sim o fascista. Assim surge o mito do fascismo, que nada tem a ver com o fascismo histórico, sem dúvida questionável.

Quem quer que defenda os valores tradicionais da cultural ocidental é tachado de “fascista” e considerado genericamente como “um mal”. O grande erro dos comunistas, segundo Gramsci, foi o de crer que o Estado se reduz a um simples aparato político. Na verdade, o Estado atua não apenas com a ajuda do seu aparato político, como também por meio de uma ideologia que descansa em valores admitidos que a maioria dos membros da sociedade têm como supostos. A referida ideologia engloba a cultura, as idéias, as tradições e até o sentido comum. Em todos esses campos atua um poder no qual também se apóia o Estado: o poder cultural.

A necessidade de uma reforma intelectual e moral para lograr uma mudança de mentalidade nas sociedades ocidentais que foram constituídas por convicções, critérios, normas, crenças, pautas, segundo a concepção cristã da vida, é de suma importância para o triunfo da revolução mundial.

Porém, nesse propósito de formação de uma nova consciência proletária, o gramscismo encontra um obstáculo: a religião. De acordo com os estudos de Gramsci, a Igreja Católica, encarada como inimiga irreconciliável do comunismo, utiliza elementos fundamentais e comuns na sociedade, chegando a toda população, tanto urbana como rural. O catolicismo, segundo Gramsci, é uma doutrina geral simplificada a fim de ser entendida por todos. Analisando esse fato, Gramsci chegou à conclusão que uma das chaves da sobrevivência do catolicismo ao longo dos séculos foi o fato de que em seu seio conviveram harmonicamente humildes e elites, sentenciando que “a Igreja romana sempre foi a mais tenaz em impedir que oficialmente se formem duas religiões: a dos intelectuais e a das almas simples”.

Concluiu que é a Igreja Católica que inspira a formação desse sentido comum cristão e, por conseguinte, era preciso erradicá-lo mediante uma ação não violenta já que essa via seria repelida pelas sociedades ocidentais, onde influi e gravita o consenso e a vontade das maiorias. Gramsci afirmou que “os elementos principais do sentido comum são ministrados pelas religiões e, por isso, a relação entre o sentido comum e a religião é muito mais íntima do que a relação entre o sentido comum e os sistemas filosóficos dos intelectuais”. “Então - prossegue Gramsci – todo o movimento cultural que tenda a substituir o sentido comum e as velhas concepções do mundo deve repetir incansavelmente os próprios argumentos, variando suas ‘formas’”.

Dessa forma, as novas concepções se difundem utilizando sofismas, dando novas interpretações a fatos históricos e chegando a parafrasear o Evangelho em alguns casos, mostrando distintos “ensinamentos” de determinadas passagens bíblicas, tal como a expulsão dos mercadores do Templo de Deus, utilizando-os como argumentos para justificar a violência e fortalecer a imagem do “Cristo guerrilheiro”, criada pelos “cristãos revolucionários”.

Essas concepções, porém, não deverão ser apresentadas em formas puras, uma vez que o povo não as aceita na medida que provoquem uma mudança traumática. Para isso, devem ser apresentadas como combinações, explorando “a crise intelectual e a perda da fé na concepção que se deseja mudar”.

Por isso, diz Gramsci, não se deve enfrentar frontalmente a Igreja Católica, e sim criar os enfrentamentos em seu seio. Enfrentamentos que não sejam apresentados como provocados por causas exógenas e sim endógenas.

Acrescente-se que o marxismo de Gramsci se apresenta como uma interpretação “filosófica” distinta do marxismo conhecido. Não há filosofia e práxis; existe uma igualdade entre pensamento e ação ao ponto em que tudo é considerado ação. Em conseqüência, a “filosofia da práxis” deve ser elaborada partindo de uma equivalência entre filosofia e política, e deverá ser construída como ciência da história, posto que filosofia e história são indissociáveis. Diz Gramsci que “a filosofia da práxis supera as precedentes, por isso é original, especialmente porque abre uma via completamente nova, ou seja, renova totalmente o modo de conceber a filosofia mesma”.

Quanto ao papel dos intelectuais, ele deixa claro que a tarefa de agente da mudança na nova concepção de mundo não pode ser desenvolvida pelos intelectuais burgueses, considerados “o elo mais débil do bloco burguês”. Devem surgir “novos” intelectuais da massa do povo. Dessa forma, a tarefa a ser desenvolvida por essa “nova” elite será a de formar uma vontade coletiva e lograr a reforma moral e intelectual, agregando que uma reforma cultural que eleve os extratos submersos da sociedade não pode ocorrer sem uma prévia reforma econômica e uma mudança na sua posição social. Por isso, afirmou que “uma reforma intelectual e moral tem que ser vinculada forçosamente a um programa de reforma econômica”.


Gramsci e o MST

Denis Lerrer Rosenfield, O Estado de S. Paulo (13/12/04)

O MST, para quem sabe ler, é um movimento revolucionário, que procura destruir o capitalismo e a democracia representativa. Uma tal afirmação pode parecer repetitiva, porém repetitivo é o discurso de nossos governantes, que não cessam de assegurar que esse movimento é "social", respeitoso das regras democráticas, tendo abdicado do uso da violência. O MST, ao contrário de seus defensores, não esconde os seus objetivos, tendo o mérito da clareza. Seus documentos são suficientemente eloqüentes.

Um deles, cujo título é Neutralização das 'trincheiras' da burguesia brasileira, coloca as etapas que devem ser seguidas para que o Brasil venha a ser uma sociedade como a "cubana", digna de tantos elogios. Em vez do uso imediato das armas, é proposta a utilização de um outro tipo de "armas", o que advém das palavras e dos discursos, segundo um trabalho lento e meticuloso de enfraquecimento das instituições republicanas. A democracia seria, então, nada mais do que um instrumento que serviria para a sua própria eliminação.

Reproduzo o primeiro parágrafo: "Conforme o gramscismo, o 'grupo dominante' da burguesia brasileira se protege em algumas 'trincheiras' que precisarão ir sendo eliminadas através da desmoralização, perda da credibilidade, perda de prestígio, do 'denuncismo', da dissidência interna, do 'patrulhamento', da penetração de intelectuais orgânicos, do constrangimento, da inibição, etc." (Os grifos são do documento.)

O MST afirma seguir os ensinamentos de Gramsci, com o uso explícito de seus conceitos. Trata-se de travar uma batalha pela formação da cabeça das pessoas, de modo que a mensagem revolucionária possa ser progressivamente implantada. Se instituições republicanas perdem a sua credibilidade e o seu prestígio, o império da transgressão e das invasões pode ser mais facilmente aceito. Os intelectuais, como vemos em parte da intelligentsia de nosso país, se colocariam - ou são colocados - nessa posição de instrumentos da ação revolucionária, que ganharia assim credibilidade. Os que se opõem a esse movimento são, então, "constrangidos" e "inibidos", como se ser contra o MST fosse ser de "direita", contra a "justiça social". O objetivo de tal estratégia consiste em calar a contestação.

Observe-se igualmente o vocabulário militar utilizado. Nesse documento, a palavra "trincheira" aparece no próprio título e, nas cartilhas "pedagógicas", voltadas para as crianças, a palavra "guerra" é a de uso mais freqüente. Aliás, poder-se-ia perguntar: onde anda o Ministério Público na defesa dos jovens, fazendo respeitar o Estatuto da Criança e do Adolescente? Será que jovens preparados para a guerra, acostumados com a violência das invasões, tendo Fidel e Guevara como ídolos, estão sendo valorizados?

Os exemplos dados para essa guerra de captura das mentes são vários. Destacarei três "trincheiras": Judiciário, Congresso e Forças Armadas. Cada uma delas tem uma série de "idéias-força", sendo seguidas de "temas explorados". As "idéias" são as armas que preparam o terreno para o descrédito das instituições republicanas, enquanto os "temas" correspondem ao modo de inviabilizá-las concretamente, comprometendo de forma definitiva a democracia.

Quanto ao Judiciário, as "idéias-força" são: "instrumento de opressão", "parcialidade", "ineficiência" e "improbidade". Os "temas explorados" são: "favorecimento dos ricos", "privilégio dos burgueses (e dos colarinhos-brancos)", "lentidão funcional" e "corrupção e privilégio dos magistrados". Quanto ao Congresso, eis as "idéias": "ineficiência", "improbidade" e "parasitismo". E os "temas": "privilégios e ociosidade", "escândalos e barganhas" e "falta de espírito público". Quanto às Forças Armadas, eis as "idéias": "ineficiência", "desnecessidade", "ônus para o País" e "fascismo". E os "temas": "destinação", "acidentes de trabalho", "golpismo, ditadura e tortura" e "serviço militar obrigatório".

Todas essas colocações se inscrevem num mesmo menosprezo pelas instituições que são pilares de uma democracia e por um Estado que cumpra suas obrigações constitucionais. A concepção que as orienta é a de um marxismo vulgar de cunho gramsciano, que reduz as instituições republicanas à mera expressão da luta de classes. Os alvos escolhidos privilegiam, cada um, seja o capitalismo (burgueses, ricos), seja a representatividade política e estatal (parcialidade, parasitismo, ineficiência, fascismo).

Segundo essa concepção, a democracia nada mais seria que formal e o capitalismo, o regime socioeconômico a ser destruído. Num procedimento típico dessa forma de autoritarismo revolucionário, os adversários são considerados "fascistas". Numa outra "trincheira", a dos "partidos políticos", estes são também qualificados de "fascistas". Ou seja, uma mentalidade fascista-comunista, seguindo o molde do marxismo vulgar, cunha instituições republicanas como "fascistas" com o propósito explícito de vir a estabelecer uma sociedade totalitária no País. A fachada do "social" é apenas a apresentação que torna mais palatável, para o estágio presente da opinião pública, a veiculação de concepções que têm como fim combater as idéias democráticas. É como se o MST estivesse dizendo: "Essas instituições não servem para nada." Será que é tão difícil escutar esse dizer?!

Qualquer semelhança com "idéias" e "temas" da situação presente é, evidentemente, mera coincidência.

Denis Lerrer Rosenfield, professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com doutorado de Estado em Filosofia pela Universidade de Paris, é autor, entre outras obras, de Hegel (Jorge Zahar Editor, Coleção Passo a Passo) e editor da revista Filosofia Política, da mesma editora. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br

Thursday, May 18, 2006

Il gobbo visto por alguns de seus fãs brasileiros e o resumo do problema que enfrentamos

"Nos últimos vinte anos, o italiano Antônio Gramsci foi, certamente, um dos autores estrangeiros mais lidos e debatidos no Brasil. Deveu-se a ele, em grande parte, a renovação do pensamento marxista entre nós, renovação que tornou possível conservar vivo o legado de Marx numa época marcada pela ofensiva das correntes neoliberais e conservadoras. E a influência de Gramsci não se limitou ao terreno da política: suas instigantes categorias ingressaram também na Universidade, tornando-se referência obrigatória para os estudiosos de quase todos os campos das ciências sociais, particularmente os da pedagogia e do serviço social."

Carlos Nelson Coutinho, no artigo Gramsci: sua teoria, incidência no Brasil, influência no Serviço Social, publicado em http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv18.htm

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"Nas notas constantes desse quarto tomo dos “Cadernos”, manifesta-se o tempo todo a convicção de que a luta pela hegemonia é longa e complexa, não pode esperar a conquista do Estado para ser travada, exige o fortalecimento do poder de persuasão por parte dos revolucionários, precisa de um bom embasamento teórico e suas vitórias decisivas passam pela esfera da cultura.

Nenhum marxista antes de Gramsci havia reconhecido uma importância política tão grande na batalha das idéias, nos conflitos culturais. Para o teórico italiano, o avanço e a consolidação do movimento dos trabalhadores, numa sociedade de tipo “ocidental”, depende de uma sempre difícil “guerra de posições”, depende de um bom planejamento, de uma eficiente organização, quer dizer, depende de conhecimentos, necessita de uma sólida preparação.

Ao contrário da “guerra de movimentos”, que se faz muitas vezes com manobras súbitas de pequenos grupos, com ações fulminantes de minorias (agindo em nome da maioria), que se serve de golpes de mão, a “guerra de posições” exige a participação ampliada, a construção do consenso.

Na “guerra de posições” cada avanço precisa ser bem calçado. A mobilização só pode ser suficientemente profunda e ter efeitos duradouros se puder se apoiar em consciências coesas e articuladas, em um pensamento rigoroso e lúcido. A transformação da sociedade, nas condições da complexidade moderna, não poderá seguir um caminho revolucionário se não aproveitar as lições proporcionadas pelos duelos da política cultural.

Em outras palavras, para passar da rebeldia à revolução, da contestação à construção de alternativas, a perspectiva com que os socialistas enfrentam os combates que travam pelo fortalecimento da “sociedade civil” necessita de instrumentos teóricos e de uma competência argumentativa que só poderão ser desenvolvidos no campo de batalha da cultura.

E Gramsci dá indicações metodológicas preciosas para a ação revolucionária nesse campo."

Leandro Konder, Gramsci e a crítica da modernidade. Jornal do Brasil, 2 jun. 2001. Caderno Idéias-Livros, p.8 ; disponível em http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv163.htm

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Entrevista de Carlos Nelson Coutinho, realizada por Maurício Santana Dias, e publicada pela Folha de S. Paulo. Alguns depoimentos de pseudo intelectuais brasileiros; passagens de um artigo de Sérgio Paulo Rouanet. Fonte: Folha de S. Paulo. Caderno Mais!, 21 nov. 1999.
Disponível em
http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=326

Folha - Em fins dos anos 60, grande parte da esquerda radicalizou suas ações contra o regime militar e partiu para a luta armada -- sob a influência de Mao, Trotski e Fidel Castro. Isso teria contribuído para o "pé atrás" em relação às teorias gramscianas?

Coutinho - Muito provavelmente. Gramsci propunha algo diverso: para ele, em países mais complexos socialmente, como já era o caso do Brasil naquele momento, a estratégia era outra. Em vez da luta armada, da "guerra de movimento", devíamos adotar a "guerra de posição", a luta progressiva pela hegemonia etc. O PCB até fazia isso, mas o fazia tão mal que era difícil convencer quem não fosse um disciplinado militante. Assim, num terreno marcado pela disputa entre Mao, Fidel e Brejnev, não havia nenhum lugar para Gramsci, o que foi péssimo para a esquerda brasileira. Só no final dos anos 70 é que Gramsci voltou a ser lido e a ter influência. Isso ocorreu sobretudo porque, naquele momento, entraram em crise tanto o "sovietismo" do PCB quanto as ilusões da chamada "esquerda armada".

Folha - Em que medida os conceitos gramscianos de "hegemonia" e "sociedade civil" renovaram o pensamento marxista?

Coutinho - Foi principalmente por causa deles que o marxismo se tornou contemporâneo do século 20 e, espero, também do século 21. Gramsci percebeu que, a partir da segunda metade do século 19, havia surgido uma nova esfera do ser social capitalista: o mundo das auto-organizações, do que ele chamou de "aparelhos privados de hegemonia". São os partidos de massa, os sindicatos, as diferentes associações -- tudo aquilo que resulta de uma crescente "socialização da política". Ele deu a essa nova esfera o nome de "sociedade civil" e insistiu em que ela faz parte do Estado em sentido amplo, já que nela têm lugar evidentes relações de poder. A "sociedade civil" em Gramsci é uma importante arena da luta de classes: é nela que as classes lutam para conquistar hegemonia, ou seja, direção política, capacitando-se para a conquista e o exercício do governo. Ela nada tem a ver com essa coisa amorfa que hoje chamam de "terceiro setor", pretensamente situado para além do Estado e do mercado.

Ao descobrir essa nova esfera, ao dar-lhe um nome e ao definir seu espaço, Gramsci criou uma nova teoria do Estado. O Estado, para ele, não é mais o simples "comitê executivo da burguesia", como ainda é dito no Manifesto Comunista, mas continua a ser um Estado de classe. Contudo, o modo de exercer o poder de classe muda, já que o Estado se amplia graças à inclusão dessa nova esfera, a "sociedade civil". Buscar hegemonia, buscar consenso, tentar legitimar-se: tudo isso significa que o Estado deve agora levar em conta outros interesses que não os restritos interesses da classe dominante. Com isso, Gramsci chegou a compreender o tipo de Estado que é próprio dos regimes liberal-democráticos, um Estado bem mais complexo do que aquele de que falam Marx e Engels no Manifesto ou Lenin e os bolcheviques no conjunto de sua obra.

Folha - Os cadernos foram escritos antes que houvesse TV, Internet, mídia eletrônica -- o que se tem chamado de "quarto poder". Como um gramsciano avaliaria a emergência desse novo fenômeno?

Coutinho - Na medida em que o mundo da mídia continua a ser propriedade privada de pequenos grupos da classe dominante, isso provoca um indiscutível desequilíbrio na disputa pela hegemonia. A nova mídia eletrônica, sobretudo a TV, tem um peso inegável na formação da opinião pública, na construção da cultura que está na base das relações de hegemonia. Mas essa nova mídia também está imersa na sociedade civil e sofre sua influência. Lembro que, na campanha pelas Diretas-já, em 84, a Globo começou simplesmente ignorando o movimento. Mas, a partir de um certo momento, à medida que a campanha se tornava de massa, não só foi pressionada a "repercutir" a campanha, mas até mesmo assumiu um tom simpático a ela.

Também aqui, portanto, trata-se de lutar pela conquista de espaços no interior da mídia, o que significa lutar por sua efetiva democratização. Isso implica não só uma pressão da opinião pública, mas também a elaboração de uma legislação adequada, que desprivatize o controle da mídia e o torne efetivamente público. Isso não é sinônimo de estatização, mas sim de controle efetivo pela sociedade civil. Se o rádio e a televisão são uma concessão pública, devem evidentemente ser publicamente controlados. Em suma, um gramsciano veria o mundo da mídia como mais um espaço de luta pela hegemonia. Nesse sentido, ele estaria mais próximo de Benjamin, que supunha ser possível utilizar revolucionariamente a "reprodutibilidade técnica" da cultura, do que de Adorno e Horkheimer, que condenam em bloco o que chamam de "indústria cultural".

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JOSÉ GENOÍNO, deputado federal (PT-SP): "Gramsci é uma referência importante para o pensamento de esquerda, um dos que mais contribuíram para renovar o marxismo neste século, tendo introduzido o conceito de "hegemonia" -- em oposição à idéia de "assalto ao poder". Alguns pontos estão superados, como as bases do dogmatismo marxista. A esquerda tem de ter uma relação de independência com esses textos, tomá-los como referência para uma releitura diante de um novo contexto. A cultura da esquerda em nosso país é muito fraca. Essa publicação ajudará a melhorar a qualidade do debate."

FREI BETTO, frade dominicano e escritor: "Considero Gramsci mais atual que nunca, porque foi dos poucos teóricos a tratar a questão da subjetividade e da cultura no processo histórico. A queda do Muro de Berlim, a meu ver, resultou do fracasso de se tentar construir coisa nova com material velho. A proposta era boa, conseguiu criar direitos sociais razoavelmente igualitários, porém não se trabalhou a questão da subjetividade e sua expressão na formação da sociedade civil e da democracia. Particularmente me encanta em Gramsci a ótica despreconceituosa diante do fenômeno religioso, o que é raro nos teóricos marxistas da primeira metade do século."

SERGIO PAULO ROUANET, A democracia cosmopolita

" No início dos anos 60, um conhecido filósofo marxista disse que era preciso "gramscianizar" o Brasil. Pouco tempo depois, seus sonhos mais ambiciosos tinham sido ultrapassados pela realidade. Seria um exagero dizer que o Brasil tinha se "gramscianizado", mas o certo é que da noite para o dia quase toda a esquerda brasileira começou a usar expressões como "intelectual orgânico", "bloco histórico" e "hegemonia".

(...)É nesse momento que aparece Gramsci, dizendo que a classe operária só poderia chegar ao poder depois que os intelectuais tivessem logrado dissolver a hegemonia existente. Graças a Gramsci, os intelectuais recebiam uma missão, a de difundir uma nova concepção do mundo; um cargo, o de "funcionários da superestrutura"; e um espaço de atuação, a sociedade civil, atravessada por instituições como a família, a Igreja, a escola, a universidade, o jornalismo, o rádio e a televisão."