Wednesday, June 21, 2006

O PT e a Estratégia Gramsciana - II

continuação...

Gramsci e o Socialismo Petista

Fato notório é que o Brasil foi um dos primeiros países, depois da Itália, a ter editados os escritos de Antonio Gramsci. Isso se deve, em grande parte, como vimos, à importância que a palavra intelectual recebe na obra do italiano e ao papel de destaque que estes possuem na formação da ideologia de classe. Acontece que o sentido tomado por essa palavra no Brasil não é o de um homem solitário que busca a verdade com a consciência respondendo, em última instância, diretamente à Deus. Somos filhos da modernidade, da época das ideologias e da política como religião, e, nesse sentido, intelectual é, para muitos de nós, o homem preocupado mais com programas políticos do que com a verdade da alma, preocupado mais em participar do que em entender, mais em transformar do que em compreender a realidade.

Somos, ainda, um povo estético e erótico12: sentimos mais que raciocinamos, queremos aparentar algo que não somos, somos superficiais. Acreditamos ainda no mito rousseauniano de que o homem nasce bom e de que é a sociedade que o corrompe. Sempre queremos primeiro mudar a sociedade para depois mudar os homens. Por isso estamos prontos a aceitar qualquer novidade que aparente trazer a cura dos males do mundo e que nos permita, ao mesmo tempo, posar como avant-garde intelectual. Primeiro foi o liberalismo antimonárquico, depois o positivismo e o fascismo, com o apelo à ordem para o progresso, depois o Marxismo e suas variantes, com o apelo à justiça terrena. Todas foram importadas por intelectuais de classe-média com o intuito de transformar a sociedade e não de interpretá-la. Agora é o gramscismo, e ele é perverso justamente por querer transformar o mundo sem ser notado, como se houvesse ocorrido uma mudança natural. A ironia é que Gramsci sabia muito bem, como os antigos, que a sociedade é formada pelo conjunto dos homens e que, se queremos transformá-la, primeiro devemos transformar os homens. Aqueles que aceitam conscientemente fazer parte dessa estratégia são réus confessos de crime contra a humanidade. E entre esses estão os ideólogos e militantes petistas.

O boom do gramscismo no Brasil ocorreu após o fracasso da luta armada e deveu-se, talvez, à falta de outras propostas revolucionárias disponíveis no momento. Gramsci foi visto, e é visto, como potencial renovador da ação socialista principalmente devido ao caráter não violento da luta revolucionária que propunha e a sua aparente falta de radicalismo. Não é exagero afirmar que a conquista da hegemonia deu um grande salto justamente no período militar. É nessa época, por exemplo, que são editadas as obras mais importantes de esquerda e que se efetiva a “ocupação dos espaços”, principalmente universitários e midiáticos. A tomada do poder, contudo, torna-se mais factível apenas a partir dos anos 90, com a desmoralização da classe política dita “tradicional” em sucessivos escândalos.

A vitória do PT nas urnas e a atração que este exerce sobre grande parte dos jovens são frutos da estratégia gramsciana, a qual foi pela primeira vez empregada em larga escala na Campanha pela Ética na política, nos anos 90. O programa do PT é gramsciano, assim como todos os homens de esquerda desse país, ainda que os adeptos declarados sejam poucos. Observar o vocabulário empregado por intelectuais e militantes em textos e discursos é mais que suficiente para comprovar essa tese. Um documento revelador da estratégia petista é um texto aprovado no 7º Encontro Nacional do PT, em 1991, e intitulado O Socialismo Petista. Constam no referido documento13:

“Na raiz do nosso projeto partidário está, justamente, a ambição de fazer do Brasil uma democracia digna desse nome. Porque a democracia tem, para o PT, um valor estratégico. Para nós, ela é, a um só tempo, meio e fim, instrumento de transformação e meta a ser alcançada.”(...)

“Outra dimensão visceralmente democrática do PT é o seu pluralismo ideológico-cultural. Somos, de fato, uma síntese de culturas libertárias, unidade na diversidade. Confluíram para a criação do PT, como expressão de sujeitos sociais concretos, mais ou menos institucionalizados, diferentes correntes de pensamento democrático e transformador: o cristianismo social, marxismos vários, socialismos não-marxistas, democratismos radicais, doutrinas laicas de revolução comportamentaletc.

O ideário do Partido não expressa, unilateralmente, nenhum desses caudais. O PT não possui filosofia oficial. As distintas formações doutrinárias convivem em dialética tensão, sem prejuízo de sínteses dinâmicas no plano da elaboração política concreta. O que une essas várias culturas políticas libertárias, nem sempre textualmente codificadas, é o projeto comum de uma nova sociedade, que favoreça o fim de toda exploração e opressão.”(...)

“O que legitima os contornos estratégicos definidos de qualquer projeto socialista é a convicção radicalmente democrática e transformadora de amplos segmentos populares. Pode-se dizer, sem indevido triunfalismo, que tal pedagogia política, baseada na auto-educação das massas por meio de sua participação civil, revelou-se, no geral, acertada”(...).

Outro documento importante14, fruto do 1º Congresso do Partido, realizado também em 1991, consagra o tipo de socialismo almejado pelos petistas. Nele, reafirma-se a opção por uma democracia socialista, de contornos vagos, que não é nem socialismo real, tampouco social-democracia (incisos 97 em diante). O PT busca um socialismo “humanista” e “radicalmente democrático”, que não aceita a ditadura do proletariado nem o mercado capitalista, mas no qual é possível a existência de um Estado de Direito e a pluralidade de opiniões. O fundo comum que move os homens nessa busca é a crença na construção de uma nova sociedade:

97.Lutamos por uma ordem social qualitativamente superior, baseada na cooperação e na solidariedade, na qual os conflitos sejam vividos democraticamente”.

É também nesse documento que o PT assume sua luta pela hegemonia em diversas frentes: “132.O Partido dos Trabalhadores reconhece que a organização de diferentes setores sociais (mulheres, negros, juventude, homossexuais etc.), seu direito de lutar e reivindicar pela definição das prioridades sociais, econômicas e políticas e sua presença na disputa pelos rumos da nova sociedade são também uma garantia da construção de uma sociedade socialista democrática”.

A tática é simples: ao não optar por nenhum dos dois tipos de governo socialista politicamente consagrados, um mais brando e outro ditatorial, ao mesmo tempo em que propõe um tipo de socialismo de definição confusa, evita-se, em tese, maiores discussões ideológicas dentro do partido e da sociedade, e, ao mesmo tempo, torna-se possível atrair novos setores da população para suas idéias, pois quem não quer uma sociedade mais justa? O socialismo vai perdendo, assim, seu caráter aparente de luta de classes – embora não o abandone –, e ganha um novo sentido na cabeça das pessoas, ainda que vago, porém muito mais palatável. As pessoas passam a aceitar o que antes viam com desconfiança. Isso é Gramsci. A síntese da política petista é essa:

152. (...) no atual período, (...), a disputa da hegemonia supõe uma ação simultânea no terreno político, social e ideológico. Engloba o trabalho nas instituições, onde atuamos no sentido de alargar as fronteiras da participação, da democracia, da cidadania e da afirmação da sociedade sobre o Estado. Inclui a diversidade das lutas sociais não institucionais e nem sempre legais. Incorpora a construção dos instrumentos organizativos pelos quais os trabalhadores e a sociedade brasileira poderão definir os rumos do País. Envolve a disputa de idéias, a construção de uma nova cultura, de uma nova ética e de uma nova solidariedade social, que se contraponham aos valores dominantes. Em resumo, disputar hegemonia, hoje, significa construir um enorme movimento social por reformas em nosso país, essencial para viabilizar um caminho alternativo de desenvolvimento, que tenha entre suas principais características a incorporação à cidadania e ao trabalho de milhões de marginalizados e deserdados sociais existentes no Brasil”.

Ou, nas palavras de um petista, professor da UFMG15:

“À medida que as culturas do socialismo foram se descolando das concepções deterministas da história, que o concebiam como um desfecho inevitável ou fortemente tendencial das contradições do capitalismo, o conceito de utopia veio adquirindo novo sentido e valorização. De expressão de um movimento operário imaturo sociologicamente ou mera fantasia sem vínculos com a realidade, a utopia passou a designar, em um contexto em que a cultura liberal busca saturar todo o horizonte histórico, a capacidade de resistência dos pensamentos anti-capitalistas, a necessidade de alargar a imaginação dos movimentos sociais e partidos de esquerda para além dos limites do imediatamente possível, concebendo novas possibilidades de civilização alternativas àquela organizada pelo princípio do capital”.

Um passo importante na estratégia: a Campanha pela Ética na Política.

Essa nova concepção culminou na famosa Campanha pela Ética na Política. Segundo Olavo de Carvalho16, essa campanha nasceu como política anti-Collor, e não com intuito moralizador verdadeiro. Quando, depois, surgiram as denúncias de corrupção no governo Collor a campanha ganhou força e crédito suficiente para atrair para o PT grande parte da classe média, a qual em geral nunca se sentiu atraída pela esquerda. Mas, ainda segundo o referido autor, esse foi apenas o resultado mais aparente, algo muito mais profundo ocorrera17:

O que poucos perceberam é que a exigência ética da campanha fora formulada em termos propositadamente utópicos, autocontraditórios, estéreis, de modo a desgastar a classe política numa sucessão de rituais autopunitivos sem resultado proveitoso, até levá-la ao completo descrédito e precipitar a crise geral do Estado, onde as esquerdas, aí já plenamente identificadas como derradeira reserva moral, se apresentariam ao povo como única esperança de salvação. A quem esteja ciente de que, no pensamento gramsciano, as mutações psicológicas profundas são o alvo prioritário de um plano de largo escopo a ser realizado, basicamente, por um grupo de intelectuais, as peças múltiplas do quebra-cabeça começam a encaixar-se, formando a figura bifronte de uma estratégia da perversão moral em nome da moralidade: de um lado, esvaziar as velhas crenças morais, rebaixando-as e transformando-as em munição política de uso imediato contra os ‘inimigos de classe’; de outro, mais sutilmente, e num círculo mais seleto de ouvintes, solapar as bases intelectuais dessas crenças, promovendo uma mutação do sentido mesmo da palavra ‘ética’, para que, cortada dos laços que a ligam a quaisquer valores espirituais e a qualquer ideal de vida superior, passasse a significar apenas a adesão maquinal a certos slogans políticos e a hostilidade a certos grupos sociais, quando não a indivíduos em particular; para que deixasse, sobretudo, de ser uma regra para o homem governar a si mesmo, e se tornasse um pretexto edificante para cada qual projetar suas culpas sobre o vizinho, beatificando o instinto de delação e fazendo da maledicência a virtude primordial do cidadão brasileiro. Tratava-se em suma de reduzir a ética ao ‘politicamente correto’, tornando o apoio às esquerdas uma obrigação religiosa cujo descumprimento teria o efeito desequilibrante de uma transgressão, sujeitando o pecador a terríveis padecimentos interiores, a um sentimento de exclusão da comunidade humana, que o homem médio não saberia suportar sem buscar logo, arrependido, a oportunidade de uma penitência reconciliadora; oportunidade que a ‘campanha do Betinho’ providencialmente estendeu a todos no momento exato, com a precisão de um cronograma divino”.

A partir daí, qualquer um que se opusesse ou se mantivesse alheio ao ideal de esquerda passava a ser visto como imoral e malvado. Muitos sentiram-se como verdadeiros pecadores; outros, querendo agradar, ainda que a contragosto, fortaleceram ainda mais a esquerda, a qual de fato foi a verdadeira vitoriosa. A Ética foi corrompida, deixou de ser absoluta e tornou-se relativa, relativa aos interesses do partido... como pregava Gramsci. Será coincidência? A partir de então o terreno para a esquerda chegar ao poder estava aberto, era só questão de tempo. A vitória da esquerda não pode ser negada, por mais que seus seguidores digam o contrário. Marco Aurélio Garcia já reconheceu o fato18:

Tem havido nos últimos anos um deslocamento para a esquerda na América Latina, que não se traduz só nas eleições de presidentes, mas também na mudança da problemática política. Mesmo os que não vieram da esquerda hoje compartilham temas da esquerda. Há uma hegemonia do pensamento da esquerda na América Latina, da mesma forma em que na década anterior havia a hegemonia do pensamento conservador”.

Como vimos anteriormente, a esquerda passou também a atrair para o seu manto, sob o fundo moral de luta por uma sociedade mais justa, diversos temas progressistas como feminismo, homossexualismo, aborto, ação afirmativa, entre outros, sem que seus novos eleitores soubessem que na verdade estavam contribuindo para a estratégia gramsciana.

E até hoje é assim. Para não passarem por “conservadores”, “reacionários”, “direitistas”, os brasileiros, principalmente os jovens, preferem acreditar que “um outro mundo é possível”, sem saber, ou fingindo não saber, que estão colaborando com os regimes mais injustos e assassinos já criados neste mundo. É muita irresponsabilidade, para dizer o mínimo, acreditar no socialismo e culpar o capitalismo por todos os males do mundo. Só homens com a alma doente podem acreditar nisso.

Nada está perdido

Mas não deve haver lugar para o derrotismo. Novamente, Eric Voegelin nos lembra que o primeiro pressuposto para alguém aderir a uma ideologia é o de que o sujeito seja desonesto intelectualmente. Afirma também que ideologias são construções insustentáveis e que para dar sustentação às suas mentiras os ideólogos devem esconder grande parte dos fatos que, deixados à vista, fariam desabar toda sua argumentação. Os ideólogos destroem a linguagem, transformando-a em mera repetição de slogans ou em jargões intelectuais altamente complicados e inacessíveis para quem está de fora do seu círculo19. Talvez seja este o motivo por que os esquerdistas fujam sempre do debate apelando a ataques pessoais e à força do número: assim como é impossível criticar a metafísica sem tornar-se antes um metafísico, é impossível criticar os argumentos pró-capitalismo sem render-se ao capitalismo, ou estudar o socialismo sem desprezá-lo imediatamente. Porém, isso é ao mesmo tempo reconhecer que estava errado, o que definitivamente é para poucos. Diante da perspectiva de descobrir que viveram na mentira – alguns a vida inteira –, é preferível continuar no auto-engano, pois menos doloroso, e de preferência na companhia de outros mentirosos, pois a mentira coletiva têm a incrível capacidade de parecer verdade. Nesse sentido, além de andarmos sempre com um lenço e com um guia veterinário, pois nos serão úteis quando a agitprop vier espumando em nossa direção como cães hidrofóbicos, temos de recuperar o verdadeiro significado da linguagem e tirar o véu dos fatos que todo militante tenta esconder – seja no campo econômico, político, psicológico, espiritual, etc. Devemos mostrar que a linguagem do ideólogo não explica a realidade, mas apenas reflete seu afastamento dela20. Isso é difícil, mas não impossível.

Ao nosso lado estão os homens que antes de nós já iniciaram esse trabalho21, muitas vezes em condições bem piores, e a certeza de estarmos lutando pela verdade, no sentido tradicional e consagrado há mais de dois mil anos. Assim como o clarão da cidade ofusca o brilho das estrelas, as ideologias ofuscam o brilho da verdade. Para rever as estrelas basta sair da cidade, para encontrar a verdade basta entrarmos em nós mesmos. O amor à verdade repousa em todo homem.